Vasco Gonçalves<br>o general do povo que fez história

Miguel Urbano Rodrigues

«Vasco Gon­çalves - um ge­neral na Re­vo­lução» (1).
O tí­tulo é en­ga­nador, não trans­mite a di­mensão e o sig­ni­fi­cado da obra.
Nem isso era pos­sível.
Esta en­tre­vista-livro não cabe nos moldes tra­di­ci­o­nais. É muito mais do que um de­poi­mento sobre a Re­vo­lução de Abril, di­fe­rente de tudo o que no gé­nero foi pu­bli­cado.

Vasco Gon­çalves tinha 52 anos quando a Re­vo­lução ir­rompeu. Por ela havia es­pe­rado, para ela se havia pre­pa­rado. Foi a maior ale­gria da sua vida «par­ti­cipar no 25 de Abril e viver aqueles mo­mentos como pri­meiro-mi­nistro». Assim se ex­pressa.

Fica trans­pa­rente que não havia um átomo de am­bição nesse sen­ti­mento de ple­ni­tude, de re­a­li­zação pes­soal. «Es­tava a levar à pra­tica ideias - re­corda - que abracei ao longo de toda a minha vida». Mas a fe­li­ci­dade que subia nele na­queles dias não nascia da fome de poder. Vasco Gon­çalves é, como homem, a an­tí­tese do di­ri­gente pre­des­ti­nado.

 «Quando aderi ao Mo­vi­mento dos Ofi­ciais - re­vela - acre­ditei que po­deria vir a de­sem­pe­nhar um papel des­ta­cado». Não havia vai­dade nessa con­vicção. Ela nascia do seu sen­tido da res­pon­sa­bi­li­dade, da sua aversão ao fas­cismo, do co­nhe­ci­mento pro­fundo que tinha do corpo de ofi­ciais do Exer­cito por­tu­guês e das mo­ti­va­ções que es­tavam na origem da cons­pi­ração anti-fas­cista em marcha.

O sen­tido do co­lec­tivo, en­rai­zado num pa­tri­o­tismo pouco comum, fa­ci­lita a com­pre­ensão de com­por­ta­mentos as­su­midos por este sol­dado atí­pico ao longo do trau­má­tico pro­cesso da re­vo­lução, de ati­tudes muitas vezes mal in­ter­pre­tadas, não obs­tante elas re­flec­tirem uma co­e­rência exem­plar, mesmo quando apa­ren­te­mente con­tra­di­tó­rias.

Não sendo um homem de par­tido, VG ad­quiriu muito cedo um co­nhe­ci­mento dos clás­sicos do mar­xismo que lhe pro­por­ci­onou uma com­pre­ensão ci­en­tí­fica da his­tória que, na prá­tica da vida mi­litar, se tra­duzia numa cons­ci­ência da ne­ces­si­dade de «formar ho­mens res­pon­sá­veis» e num sen­ti­mento de so­li­da­ri­e­dade com o seu povo, ví­tima com os das co­ló­nias, de um sis­tema mons­truoso.

A mo­déstia di­fi­cultou-lhe, en­tre­tanto, ava­liar ple­na­mente o sig­ni­fi­cado da sua in­ter­venção na his­tória quando, de re­pente, o rumo da re­vo­lução, após o cha­mado golpe Palma Carlos, o ca­ta­pultou para São Bento como pri­meiro-mi­nistro.


O sen­tido do co­lec­tivo


So­mente uma fu­tura ge­ração es­tará em con­di­ções, com o dis­tan­ci­a­mento tem­poral, de si­tuar na his­tória, sem paixão, o papel que o ci­dadão, o sol­dado e o es­ta­dista cum­priram na Re­vo­lução Por­tu­guesa.

Ele, Vasco Gon­çalves, evoca com rigor os acon­te­ci­mentos, faz des­filar as per­so­na­gens pelo grande ce­nário do Por­tugal re­vo­lu­ci­o­nário, apre­senta o povo como o su­jeito da trans­for­mação da so­ci­e­dade, ana­lisa com mi­núcia de ci­en­tista a ins­ti­tuição mi­litar, es­boça com ni­tidez perfis dos seus ca­ma­radas de armas. Mas sente enorme di­fi­cul­dade em se con­tem­plar como o grande pro­ta­go­nista de rup­turas que pro­va­vel­mente não se te­riam pro­du­zido sem a sua in­ter­venção pes­soal.

Não creio que seja o pudor a inibi-lo. Como mar­xista sabe que ava­liar o sig­ni­fi­cado da in­ter­venção do in­di­víduo na his­tória en­volve um de­safio muito com­plexo. E quando es­barra nele pró­prio como factor sub­jec­tivo e ele­mento di­na­mi­zador da mu­dança his­tó­rica passa ao lado, de­siste.

É to­cado pela amar­gura, porque não lhe es­capam a mes­qui­nhez, a me­di­o­cri­dade, a am­bição, a des­le­al­dade, o medo do povo que, em ins­tantes de­ci­sivos, ex­plicam op­ções que fi­zeram in­flectir o rumo do pro­cesso, in­vi­a­bi­li­zando o avanço da Re­vo­lução. Mas na evo­cação dessas si­tu­a­ções o seu sen­tido do co­lec­tivo pre­do­mina sempre sobre os as­pectos sub­jec­tivos e essa cons­ci­ência do mo­vi­mento da his­tória per­mite que o tes­te­munho dele, como actor do em­pol­gante es­pec­tá­culo re­vo­lu­ci­o­nário, ad­quira uma sin­gular gran­deza.

Evi­dên­cias que para mi­lhões de por­tu­gueses não o eram as­sumem grande sig­ni­fi­cado quando as ilu­mina. Um exemplo: re­cordar que «o MFA não era um mo­vi­mento re­vo­lu­ci­o­nário (...) não tinha ao prin­cípio, no seu ho­ri­zonte, uma re­vo­lução so­cial».

Foi a ir­rupção tor­ren­cial das massas, to­mando as ruas, na pró­pria jor­nada do 25 de Abril que abriu as portas à ali­ança Povo-MFA, im­pri­mindo ao pro­cesso um rumo ines­pe­rado e ori­ginal.

Spí­nola, a com­po­sição da Junta de Sal­vação Na­ci­onal, o Go­verno Palma Carlos, a ca­deia de acon­te­ci­mentos que de­sem­bocou na farsa da «mai­oria si­len­ciosa» e na con­fron­tação do 28 de Se­tembro re­sul­taram de erros ini­ciais, quase ine­vi­tá­veis pelas pró­prias ca­rac­te­rís­ticas do MFA. «Como não éramos um mo­vi­mento re­vo­lu­ci­o­nário não con­se­guimos re­a­lizar a trans­for­mação ne­ces­sária da ca­deia hi­e­rár­quica». Vasco Gon­çalves lembra que «no pró­prio 25 de abril o MFA ainda se di­rigia a Tomás como sua Ex­ce­lência o Pre­si­dente da Re­pú­blica, e a Mar­celo como Sua Ex­ce­lência o Pre­si­dente do Con­selho».


Ho­mens que dei­xaram marcas


As pá­ginas sobre o 28 de Se­tembro, o 11 de Março e o 25 de No­vembro con­tri­buem para ilu­minar si­tu­a­ções menos co­nhe­cidas da­quelas jor­nadas através da re­flexão, sempre se­rena, de al­guém que se en­con­trava numa po­sição ex­cep­ci­onal para ava­liar o que em cada uma delas es­tava em causa.

Vasco Gon­çalves, pelo seu culto do eti­cismo, não re­corre a meias pa­la­vras quando a en­tre­vis­ta­dora o in­ter­roga sobre ho­mens cuja par­ti­ci­pação nos anos 74 e 75 deixou marcas im­por­tantes no pro­cesso re­vo­lu­ci­o­nário. Dos fi­gu­rantes nem os nomes cita. Mas não he­sita em ex­pressar-se com uma fran­queza ina­bi­tual sobre civis e mi­li­tares, re­vo­lu­ci­o­ná­rios e contra-re­vo­lu­ci­o­ná­rios, que dei­xaram marcas na­queles anos de­ci­sivos. De Sá Car­neiro formou uma opi­nião muito ne­ga­tiva. De­fine-o como a ca­beça pen­sante da pri­meira cons­pi­ração re­ac­ci­o­nária, como o prin­cipal con­se­lheiro de Spí­nola. Exigiu o seu afas­ta­mento.

Na serie de pa­rá­grafos que de­dica a Mário So­ares es­boça um re­trato também muito ne­ga­tivo do homem e do po­lí­tico. Evita qua­li­fi­ca­tivos. Sem re­correr quase a ad­jec­tivos, pro­jecta dele, pelas ati­tudes as­su­midas, pela du­pli­ci­dade do dis­curso e pelas con­tra­di­ções na acção, o perfil da­quilo que sempre foi: um po­lí­tico am­bi­cioso, sem prin­cí­pios, nem con­vic­ções.

O mesmo homem, re­corda, que a 15 de Março, no Bar­reiro, sau­dava o 11 de Março como «um dia his­tó­rico em que o ca­pi­ta­lismo se afundou com a na­ci­o­na­li­zação da banca pri­vada» - não tar­daria a re­negar essa po­sição, já numa pos­tura aber­ta­mente re­ac­ci­o­nária e de di­reita. Mário So­ares não se li­mitou a as­sumir o co­mando da contra-re­vo­lução le­gis­la­tiva; foi um dos ins­pi­ra­dores da re­cu­pe­ração ca­pi­ta­lista. Uma se­mana após as elei­ções para a Cons­ti­tuinte, o PS, exi­bindo a ar­ro­gância que lhe vinha da vi­tória nas urnas, pro­cedeu a uma re­visão tác­tica ori­en­tada para a di­visão do MFA. Vasco Gon­çalves aborda a questão de fundo: «o PS não pre­tendia acabar com o do­mínio dos grandes grupos eco­nó­micos e mo­no­po­listas, nem dos la­ti­fun­diá­rios, não obs­tante as afir­ma­ções re­vo­lu­ci­o­ná­rias ra­di­cais que fi­zera» (166).

No to­cante ao papel que Mário So­ares de­sem­pe­nhou logo após o 25 de Abril como mi­nistro dos Ne­gó­cios Es­tran­geiros, o ge­neral chegou à con­clusão de que ele «não deu uma imagem fiel do MFA (...) e, nas suas fre­quentes vi­a­gens ao es­tran­geiro, apro­vei­tava para de­sen­volver ac­ções co­or­de­nadas com a so­cial-de­mo­cracia in­ter­na­ci­onal, as quais, quanto a mim, nunca eram úteis, no mí­nimo, à con­so­li­dação do pro­cesso re­vo­lu­ci­o­nário» (pg. 147 e 148 ). Mas que se po­deria es­perar de um po­lí­tico que, re­cen­te­mente, enal­teceu a con­tri­buição de Frank Car­lucci - o ex di­rector da CIA - para «a ins­tau­ração da de­mo­cracia em Por­tugal»?.


Perfis


São breves, mas muito ex­pres­sivos, os perfis que, Vasco Gon­çalves, res­pon­dendo a per­guntas de Ma­nuela Cru­zeiro, es­boça de al­guns dos mais des­ta­cados mi­li­tares de Abril.

Otelo Sa­raiva de Car­valho, ob­vi­a­mente muito ci­tado, surge re­tra­tado em cinco li­nhas: «não es­teve à al­tura das res­pon­sa­bi­li­dades que as­su­mira pe­rante o país. Deu grandes es­pe­ranças e es­tí­mulos à po­pu­lação e às classes mais des­fa­vo­re­cidas, mas de forma le­viana e in­con­se­quente. In­fe­liz­mente não tinha a for­mação po­lí­tica, a lu­cidez, a fir­meza re­vo­lu­ci­o­nária e o sen­tido das res­pon­sa­bi­li­dades que a si­tu­ação exigia».

Spí­nola e Costa Gomes são, como era ine­vi­tável, alvo de atenção muito es­pe­cial.

Não é so­mente na opi­nião que formou sobre ambos como ho­mens que o ex-pri­meiro-mi­nistro con­segue dizer coisas que para o leitor têm o sabor do iné­dito. A ad­mi­ração que sentia por Costa Gomes como mi­litar é rei­te­rada com in­sis­tência em di­fe­rentes ca­pí­tulos.

Com­pa­rando os dois fu­turos ma­re­chais, afirma: «do ponto de vista mi­litar, eu penso que a ideia geral era que Costa Gomes era um homem mais com­pe­tente que Spí­nola, e não tenho quais­quer dú­vidas a esse res­peito. E a uma grande dis­tância, a uma grande dis­tância.»

A ideia que tinha de Spí­nola, mesmo como po­lí­tico - para além da falta de ca­rácter - nunca foi fa­vo­rável. Vasco Gon­çalves é ca­te­gó­rico: Costa Gomes «de­mons­trou uma in­te­li­gência po­lí­tica in­com­pa­ra­vel­mente su­pe­rior à de Spí­nola».


Sen­tido da ética


São hoje do do­mínio pu­blico di­ver­gên­cias pro­fundas que sur­giram, a partir do IV Go­verno Pro­vi­sório, entre o ge­neral, como pri­meiro-mi­nistro e membro do Con­selho da Re­vo­lução, e o pre­si­dente da Re­pú­blica. Mas elas não afec­taram mi­ni­ma­mente nem a ad­mi­ração pro­fis­si­onal nem o res­peito hu­mano que Vasco Gon­çalves man­tinha por quem, so­bre­tudo nos úl­timos anos, sobre ele emitiu juízos le­vi­anos e até ir­res­pon­sá­veis.

Esse sen­tido da ética está, aliás, om­ni­pre­sente nas ati­tudes que o ge­neral as­sumiu sempre no seu re­la­ci­o­na­mento com os seus ca­ma­radas do MFA

no pe­ríodo re­vo­lu­ci­o­nário e, pos­te­ri­or­mente, quando, a muitos anos de dis­tância, foi cha­mado a pro­nun­ciar-se sobre acon­te­ci­mentos cujo dra­ma­tismo re­flectiu a rup­tura da uni­dade do mo­vi­mento que tor­nara pos­sível o 25 de Abril.

Esse eti­cismo trans­pa­rece - é apenas um exemplo - de uma ma­neira lím­pida, quase co­mo­ve­dora, nas pá­ginas em que o re­cons­truir da me­mória his­tó­rica co­loca no pri­meiro plano o nome de Melo An­tunes.


Sem ani­mo­si­dades


Vasco Gon­çalves re­agiu como sol­dado ao que con­si­derou uma des­le­al­dade dos ca­ma­radas que nos bas­ti­dores de­sen­vol­veram mo­vi­men­ta­ções de ca­rácter cons­pi­ra­tivo que de­sem­bo­caram no cha­mado Do­cu­mento dos Nove. Foi uma da­quelas fe­ridas cujas se­quelas o acom­pa­nharam pela vida adi­ante. Não é de ran­cores; mas não es­queceu. E, con­tudo, nas opi­niões que, já no sé­culo XXI, emite sobre o major Melo An­tunes, pre­ci­sa­mente o ca­ma­rada do MFA que mais ad­mi­ração lhe ins­pi­rava, não há qual­quer ves­tígio de ani­mo­si­dade pes­soal, quando fala sobre o com­pa­nheiro de­sa­pa­re­cido. Pelo con­trário.

«O Melo An­tunes - su­blinha no seu de­poi­mento - era, sem dú­vida entre os meus ca­ma­radas o mi­litar com mai­ores co­nhe­ci­mentos po­lí­ticos, mais lei­turas, mais re­flexão».

Ins­tado a pro­nun­ciar-se sobre a ac­tu­ação dele antes e após o 25 de No­vembro, Vasco põe a nota na co­e­rência.

«Ele não mudou de ideias ou de po­sição, no fun­da­mental, entre o 25 de abril e o 25 de No­vembro. Era um homem sin­ce­ra­mente de es­querda (à es­querda do PS), era um pa­triota, um an­ti­co­lo­ni­a­lista con­victo» (...)

Claro que olhares di­fe­rentes sobre a his­tória e ideias de Re­vo­lução também di­fe­rentes te­riam, na ló­gica do pro­cesso, de os dis­tan­ciar.

«Melo An­tunes - es­cla­rece - pre­tendia ca­mi­nhar como que por uma ter­ceira via, mas a ex­pe­ri­ência tem de­mons­trado que essa via é o ca­minho da so­cial-de­mo­cracia para a di­reita».

No pro­jecto de que o Do­cu­mento dos Nove foi uma rui­dosa es­po­leta, Vasco Gon­çalves iden­ti­fica a utopia de muitos por­tu­gueses ape­gados ao mito das ins­ti­tui­ções for­mal­mente de­mo­crá­ticas, que te­miam o apro­fun­da­mento da Re­vo­lução. Talvez ne­nhum outro tenha sido tão re­pre­sen­ta­tivo dessa cor­rente como Melo An­tunes. Vasco Gon­çalves não es­quece aliás, o papel que ele de­sem­pe­nhou na con­tenção da ofen­siva da di­reita logo após o 25 de Abril. Nem se­quer era an­ti­co­mu­nista, «era, mais pro­pri­a­mente anti-so­vié­tico».


Uma questão ac­tual


Tenho cons­ci­ência da ex­trema di­fi­cul­dade de trans­mitir aos lei­tores uma ideia, mesmo im­pre­cisa, da im­por­tância deste livro. A te­má­tica, aliás, é tão vasta que a ten­ta­tiva de a re­sumir não aju­daria a uma com­pre­ensão do que nele há de mais va­lioso.

Mas uma cer­teza me fica: nin­guém como Vasco Gon­çalves con­se­guiu até hoje descer tão fundo na aná­lise do com­por­ta­mento e das mo­ti­va­ções da par­cela do corpo de ofi­ciais das Forças Ar­madas cuja re­jeição da guerra co­lo­nial levou à for­mação do MFA - o es­tra­nhís­simo mo­vi­mento he­te­ro­géneo que or­ga­nizou o golpe mi­litar do 25 de Abril - um mo­vi­mento onde havia muitos re­vo­lu­ci­o­ná­rios mas que não era re­vo­lu­ci­o­nário.

O re­nascer do de­bate ide­o­ló­gico no con­texto da crise de ci­vi­li­zação que a hu­ma­ni­dade atra­vessa con­fere pa­ra­do­xal­mente ac­tu­a­li­dade a pro­blemas tra­tados num de­poi­mento sobre a in­ter­venção na his­tória de um ge­neral por­tu­guês. Isso porque a Re­vo­lução Por­tu­guesa foi um fas­ci­nante la­bo­ra­tório ide­o­ló­gico cujo sig­ni­fi­cado trans­cende as ge­ra­ções que a vi­veram.

Vasco Gon­çalves não foi nela um par­ti­ci­pante neutro. Pri­meiro-mi­nistro de cinco Go­vernos Pro­vi­só­rios, in­ter­veio como re­vo­lu­ci­o­nário. Assim se as­sume. É nessa con­dição que fala sobre os Par­tidos, a ali­ança Povo-MFA, a ins­ti­tu­ci­o­na­li­zação do Mo­vi­mento, o de­bate ge­rado pela uni­ci­dade sin­dical, a questão da van­guarda. Trans­cor­ridas quase quatro dé­cadas, po­derá, so­bre­tudo a po­lí­ticos res­pon­sá­veis pelo de­sastre que é o Por­tugal de hoje, pa­recer ab­surda a in­sis­tência, quase do­lo­rosa , com que Vasco Gon­çalves pro­cura ana­lisar as causas pro­fundas do ma­logro do sonho re­vo­lu­ci­o­nário.

Não penso assim. A trans­for­mação do mundo bi­polar em uni­polar, he­ge­mo­ni­zado pelo Novo Im­pe­ri­a­lismo norte-ame­ri­cano, traz-nos a cer­teza de que a Re­vo­lução Por­tu­guesa, ad­mi­tindo que se hou­vesse apro­fun­dado rumo ao so­ci­a­lismo, não teria po­dido so­bre­viver. Não é de ex­cluir que o des­fecho fosse um banho de sangue, porque a nova cor­re­lação de forças faria da contra-re­vo­lução uma exi­gência.

Mas a His­tória não se de­sen­volve às avessas, como se o pas­sado pu­desse ser de­ter­mi­nado a partir do fu­turo. A in­vi­a­bi­li­dade da Re­vo­lução Por­tu­guesa numa Eu­ropa da qual a URSS de­sa­pa­receu não pode servir de jus­ti­fi­cação po­lí­tica à contra-re­vo­lução.

Para quantos se si­tuam na pers­pec­tiva de Vasco Gon­çalves - entre eles me in­cluo - a Re­vo­lução Por­tu­guesa foi uma re­vo­lução as­sas­si­nada. Assim a de­vemos tentar com­pre­ender, con­tem­plada deste início do sé­culo XXI, quando al­guns dos prin­ci­pais res­pon­sá­veis civis pela contra-re­vo­lução, pe­quenos po­lí­ticos ca­ri­ca­tu­rais, se pa­vo­neiam pelo mundo mas­ca­rados de cam­peões da de­mo­cracia.

No in­verno da vida,Vasco Gon­çalves está cons­ci­ente de que «as mai­ores con­quistas que o povo por­tu­guês al­cançou ao longo dos seus oito sé­culos de his­tória, se ve­ri­fi­caram em 74-75 e nelas de­sem­pe­nharam um papel fun­da­mental os mi­li­tares do MFA» (pág.184.)

O pro­jecto re­vo­lu­ci­o­nário, como o con­ce­bera, não se con­cre­tizou. Mas não há ca­lúnia nem agressão à his­tória que possa apagar o sig­ni­fi­cado da par­ti­ci­pação de­ci­siva na Re­vo­lução de Vasco Gon­çalves, ci­dadão, sol­dado e pa­triota. Ele foi, com Álvaro Cu­nhal, um dos grandes por­tu­gueses do sé­culo XX.

(1) Vasco Gon­çalves - um Ge­neral na Re­vo­lução, En­tre­vista de Maria Ma­nuela Cru­zeiro, 305 págs. Edi­to­rial No­tí­cias, Lisboa, Ou­tubro de 2002.



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